Mais um café. Era tudo o que Paula precisava para continuar sua noite de trabalho. Que lástima ter esquecido o notebook no escritório! Voltaria para casa e terminaria o relatório no antigo computador, como de praxe. Um mocaccino duplo, algumas páginas da Folha de São Paulo e aquele simpático café, repleto de flores e janelas compunham seu momento de descanso, de colocar as idéias em ordem e ter coragem de cumprir as tarefas restantes. O mais importante era essa visão que ela conseguia ter, do alto do segundo andar em que o estabelecimento se situava.
Um de seus costumes era desenhar os contornos das pessoas com os dedos, no vidro da janela. Segurava suas cabeças, sorria por dentro por tentar esmagá-las, como se fosse uma poderosa deusa, pronta para aniquilar os que não seguissem suas regras. Seu ego atingia alturas desmedidas, como em compensação pelo sentimento de perda que a acompanhava no trabalho, em casa, entre os vivos. Aquele era seu trono. Degustava o café com graça, entre os goles lia as manchetes nas páginas do jornal e observava, do topo de sua fortaleza, tantas outras que se desenrolavam na rua.
Nesta dança café-jornal-janela, os olhos da moça congelaram por alguns instantes. Transformaram-se em olhos de boneca, vidrados, sem vida. Cenas sórdidas se projetavam atrás daquela vidraça, frágil e transparente, quadros com os quais todos já estavam acostumados, mas que inconscientemente tiravam sua calma e acabavam com aquela sensação de poder e majestade em que Paula mergulhava quase que todas as tardes, em seu trono de café e ilusão.
Entre goles e suspiros, pensou em seu notebook, e se amanhã ele estaria onde ela o deixou. Sua casa poderia muito bem ter sido invadida por ladrões, seu carro teria grandes chances de ler levado por uma enchente ou atingido por um raio, ela poderia ser seqüestrada ao sair dali.
Seus olhos estavam fixos na primeira página do jornal desde que se sentara em sua cadeira. A manchete anunciava uma boa notícia, apesar de todo aquele caos que sangrava nas ruas e nas outras páginas. Sinal de esperança, ou não, isso era reconfortante, assim como estar ali em sua torre de vidro, guardada e protegida do mundo. No entanto, quem a protegeria de seus próprios medos, daquela angústia que a cortava, das frustrações, dos conflitos, do pânico e da insônia que a fazia ter de gastar mais com maquiagem do que ela gostaria? Ela que, tão soberana e majestosa esmagava com os dedos as miniaturas de pessoas que vagavam pelo asfalto, sentia-se a menor das formigas ao fazer parte dessa multidão de corações inseguros. Era apenas mais uma, e não a única. Frio e calor oscilavam na atmosfera e ela disfarçava muito bem o fato de não saber como lidar com essas bruscas transformações do tempo.
Com a xícara de café em uma das mãos, trêmulas e apressadas, Paula inspirou profundamente, com todos os medos entalados na garganta, sentiu uma lágrima bailando em seus cílios, despencando em linha reta, molhando a palavra ‘segurança’ impressa no jornal. Não estava segura, e isso era bom, ruim, apavorante e normal. Era a vida, ali em seu trono e mais vida ainda quando estivesse de volta ao chão, junto com os pobres plebeus. E isso era ser urbano, humano, ou o que quer que fosse.