Preciso ter forças – repito isso todas as manhãs antes de levantar. Preciso ter forças. E assim que acordo, desespero-me com o fio de teu cabelo no travesseiro. Sussurro o quanto sinto tua falta, quantas vezes menti para poder tê-la por perto. Sou covarde e mentiroso. Sempre estou bem, digo. Sempre. Sempre as mesmas mentiras, hipocrisias. Mas preciso ter forças. E para voltar dos encontros sádicos, magoado comigo, com a vida. Sou um anjo que cai eternamente sem nunca tocar o chão. E nesse cair, posso medir a vida obtusa em seus movimentos. Aliás, quantas vezes te toquei num acaso proposital para sentir o calor de tua pele. Pele com pele. E eu aqui, sozinho com o travesseiro e um fio de cabelo que não é teu e finjo ser.
Preciso ter forças para aguentar tanta lágrima que é desespero e convulsão e histeria. O debater-se revoltado na cama por jamais te encontrar, nem em sonho. Eu sou a pessoa que mais me decepciona. Meu inconsciente cospe e ri de mim enquanto cria sonhos em você me visita com outro. E está sempre feliz, e eu, como sou acordado, doído. Sou meu maior inimigo por tamanho romantismo e egoísmo. Mas escuta, tenho medo. Sou tão limitado que não sei se posso te querer com sinceridade. Eu também não te quero como te imagino, mas loucos podemos ser tudo. Tudo exceto o que imagino. Não consigo tornar real, ou não quero.
Não quero, não posso – são tantas negativas vindas de mim, é essa incapacidade que me enlouquece. E isso também é mentira, são as proto-você-imaginadas que me enlouquecem, cospem e riem de mim, descaradamente, pois são elas que me conhecem, ridicularizam-me. Mas é tudo um jogo mental do meu inconsciente contra mim – para você, sou referência para circunscrever o outro, não eu. Sou o oposto-igual do outro, construído de fragmentos de pessoas mais caras a ti, Frankenstein corpo-atos-ação.
Quero respirar fundo, aliviar o peito encaixotado e surrado, mas prender-me às memórias é mais importante para resgatar teu cheiro, a silhueta do teu corpo quando despia-se daquela camisola prateada, encarar teu sexo e ouvir novamente em pensamento dizendo o quão louca eu te fazia. Loucos, você me faz louco, ou já nem sei mais se sou louco e te culpo por me iludir com minhas loucuras que são também mentira. Eu queria que voltasse, queria tanta coisa. Queria que me tocasse com tuas mãos e levasse a tua nuca que reconheço de tão distante. Queria dormir e não sonhar contigo. Ter um sonho bom sem você me violentando com tua felicidade egoísta, sem me preocupar se quero urrar, bater meu corpo contra parede ou correr desesperadamente de encontro com o nada, sem rumo.
E preciso ter forças para respirar, localizar-me nessa solidão que não divido com ninguém. O sofrimento tornou-se egoísta, eu quero ter posse, tateá-lo, degustá-lo e degluti-lo, para depois vomitar. Expulsar todo esse azedo e morno de dentro das vezes que me ameaçava não me querer mais. E você nunca me quis, e eu te queria tanto. Ainda te quero. E cá estamos todos nós, na medida exata do ponto seco. Solitários, diluindo como areia ao vento.
terça-feira, 16 de novembro de 2010
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
Em Segurança
Mais um café. Era tudo o que Paula precisava para continuar sua noite de trabalho. Que lástima ter esquecido o notebook no escritório! Voltaria para casa e terminaria o relatório no antigo computador, como de praxe. Um mocaccino duplo, algumas páginas da Folha de São Paulo e aquele simpático café, repleto de flores e janelas compunham seu momento de descanso, de colocar as idéias em ordem e ter coragem de cumprir as tarefas restantes. O mais importante era essa visão que ela conseguia ter, do alto do segundo andar em que o estabelecimento se situava.
Um de seus costumes era desenhar os contornos das pessoas com os dedos, no vidro da janela. Segurava suas cabeças, sorria por dentro por tentar esmagá-las, como se fosse uma poderosa deusa, pronta para aniquilar os que não seguissem suas regras. Seu ego atingia alturas desmedidas, como em compensação pelo sentimento de perda que a acompanhava no trabalho, em casa, entre os vivos. Aquele era seu trono. Degustava o café com graça, entre os goles lia as manchetes nas páginas do jornal e observava, do topo de sua fortaleza, tantas outras que se desenrolavam na rua.
Nesta dança café-jornal-janela, os olhos da moça congelaram por alguns instantes. Transformaram-se em olhos de boneca, vidrados, sem vida. Cenas sórdidas se projetavam atrás daquela vidraça, frágil e transparente, quadros com os quais todos já estavam acostumados, mas que inconscientemente tiravam sua calma e acabavam com aquela sensação de poder e majestade em que Paula mergulhava quase que todas as tardes, em seu trono de café e ilusão.
Entre goles e suspiros, pensou em seu notebook, e se amanhã ele estaria onde ela o deixou. Sua casa poderia muito bem ter sido invadida por ladrões, seu carro teria grandes chances de ler levado por uma enchente ou atingido por um raio, ela poderia ser seqüestrada ao sair dali.
Seus olhos estavam fixos na primeira página do jornal desde que se sentara em sua cadeira. A manchete anunciava uma boa notícia, apesar de todo aquele caos que sangrava nas ruas e nas outras páginas. Sinal de esperança, ou não, isso era reconfortante, assim como estar ali em sua torre de vidro, guardada e protegida do mundo. No entanto, quem a protegeria de seus próprios medos, daquela angústia que a cortava, das frustrações, dos conflitos, do pânico e da insônia que a fazia ter de gastar mais com maquiagem do que ela gostaria? Ela que, tão soberana e majestosa esmagava com os dedos as miniaturas de pessoas que vagavam pelo asfalto, sentia-se a menor das formigas ao fazer parte dessa multidão de corações inseguros. Era apenas mais uma, e não a única. Frio e calor oscilavam na atmosfera e ela disfarçava muito bem o fato de não saber como lidar com essas bruscas transformações do tempo.
Com a xícara de café em uma das mãos, trêmulas e apressadas, Paula inspirou profundamente, com todos os medos entalados na garganta, sentiu uma lágrima bailando em seus cílios, despencando em linha reta, molhando a palavra ‘segurança’ impressa no jornal. Não estava segura, e isso era bom, ruim, apavorante e normal. Era a vida, ali em seu trono e mais vida ainda quando estivesse de volta ao chão, junto com os pobres plebeus. E isso era ser urbano, humano, ou o que quer que fosse.
sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
125 7th Street revisited
Havia chegado tarde do trabalho. Jogou a mala sobre o sofá e as roupas por todo o chão do apartamento. Seminu, trajando apenas uma bermuda e chinelos, foi até a varanda e sentou-se em sua cadeira que comprara em Maceió. Do maço surrado de Marlboro, tirou um cigarro que foi logo acendendo. Da sala, podia-se ouvir, ao fundo, a melodia de The killing moon.
Sentado, observava silhuetas dos edifícios ao redor: todos iguais e gêmeos pela ausência de doçura. Gostava dessas doçuras da vida: brownies, Via Láctea, preguiça matutina, e fantasiava um mundo repleto dessas doçuras que nunca se encerram em si. Porém, entre ele e as silhuetas havia um poço de estacionamentos e playgrounds envoltos num breu silencioso. Puxou para si a luneta que ganhara quando criança e percorreu as luzes penduradas nos condomínios ao redor. Via-se casais dormindo profundamente, adolescentes em computadores, solteiros preparando o jantar.
Foi num transporte de olhar inesperado, que, numa outra varanda, surgiu um vulto abraçado aos joelhos. Ouvia-se através do breu silencioso uma respiração opressa, um soluço.
A dor é um encantamento que os tomou num transe: ela, pesada e irreversível; ele, curioso e irrecuperável. Ficaram unidos nesse tempo indissolúvel, parados, num abraço-olhar. Por detrás das retinas tão agudas dele, enquadrava-se o sofrimento tão dela, tão egoísta.
Acima, em meio às nuvens, a lua andarilhava meio-escapista acorrentando os personagens numa passarela curiosidade-sofrimento. Ele queria fazer a travessia de toda aquela escuridão e acalentá-la num abraço, mas ela repugnava os homens, as mulheres e crianças e animais. Na repulsa por tudo que era vivo, soergueu sua cabeça, e por detrás das palmas manchadas pela maquiagem, avistou um curioso que encarnava o solidário e o repreensivo. Notou-se tão nua e indefesa que só lhe sobrou forças para correr para dentro de seu apartamento.
Do outro lado desse mesmo abismo, ele sentiu tamanha vergonha de sua curiosidade que não pôde terminar seu cigarro.
Sentado, observava silhuetas dos edifícios ao redor: todos iguais e gêmeos pela ausência de doçura. Gostava dessas doçuras da vida: brownies, Via Láctea, preguiça matutina, e fantasiava um mundo repleto dessas doçuras que nunca se encerram em si. Porém, entre ele e as silhuetas havia um poço de estacionamentos e playgrounds envoltos num breu silencioso. Puxou para si a luneta que ganhara quando criança e percorreu as luzes penduradas nos condomínios ao redor. Via-se casais dormindo profundamente, adolescentes em computadores, solteiros preparando o jantar.
Foi num transporte de olhar inesperado, que, numa outra varanda, surgiu um vulto abraçado aos joelhos. Ouvia-se através do breu silencioso uma respiração opressa, um soluço.
A dor é um encantamento que os tomou num transe: ela, pesada e irreversível; ele, curioso e irrecuperável. Ficaram unidos nesse tempo indissolúvel, parados, num abraço-olhar. Por detrás das retinas tão agudas dele, enquadrava-se o sofrimento tão dela, tão egoísta.
Acima, em meio às nuvens, a lua andarilhava meio-escapista acorrentando os personagens numa passarela curiosidade-sofrimento. Ele queria fazer a travessia de toda aquela escuridão e acalentá-la num abraço, mas ela repugnava os homens, as mulheres e crianças e animais. Na repulsa por tudo que era vivo, soergueu sua cabeça, e por detrás das palmas manchadas pela maquiagem, avistou um curioso que encarnava o solidário e o repreensivo. Notou-se tão nua e indefesa que só lhe sobrou forças para correr para dentro de seu apartamento.
Do outro lado desse mesmo abismo, ele sentiu tamanha vergonha de sua curiosidade que não pôde terminar seu cigarro.
terça-feira, 24 de novembro de 2009
Dureza
Carlos Andrade já estava vivendo seus 42 anos. 15 deles no ramo de construção civil. Como todo mineiro, não falava muito. Isso incomodava os colegas. Não tinha dinheiro e não podia comprar nada. Casa. Família. Comida. Os trocados apenas serviam para uns maços de um cigarro bem vagabundo e nauseante.
Toda manhãzinha ensaiava comer. Contemplava a pouca comida. Pensava. Salivava. E acendia um cigarro para matar a fome.
Saía de casa e ia ao trabalho a pé. Ônibus era coisa dispensável. Ônibus ou cigarro? Ônibus ou fome? Não tinha dúvida. E acendia outro cigarro.
No serviço, Carlão, como era conhecido entre os nordestinos trabalhadores e insuportáveis de tanta alegria, pegava suas ferramentas. Chave inglesa. Marreta. Capacete. E partia para o setor 34b. Acenderia um cigarro, mas se o fizesse não teria o que comer no almoço.
Falemos um pouco do setor 34b. Era um esqueleto ainda. As vigas ouviam as promessas de Carlão – Um dia vocês serão uma grande loja – e ficavam todas felizes ao vê-lo retornar dia após dia com a promessa de que as tornasse algo. Para elas o retorno era uma possível criação.
Carlão trabalhava sozinho no 34b. Isso era um sonho para ele. Vivia ali com as conversas impronunciáveis do metal. Com os delicados xingamentos da madeira quando pregada. E ainda a calma do cimento que secava lentamente.
Então chegou a hora do almoço. Carlão nem se preocupou em descer ao refeitório. Ou mesmo ir ao restaurante frente à construção. - Isso custa! - E ele não custava. Simplesmente almoçou o cigarrinho costumeiro. Tragou uma. Duas vezes bem forte. E sofreu um assalto. Uma tosse assaltou seu ar. Foi ficando tonto. Tossia mais e mais. Não havia como reagir ao assalto. Foi roubado, roubado. O ar. Faltando, faltando...
O fim do almoço tocou. Carlão estava lá parado. O cigarro queimava entre seus dedos. Tocou também, horas mais tarde, o café. Assim como o fim dele. Tocou o fim do dia.Carlão permaneceu imóvel. Parte de uma das fachadas do que seria um grande shopping.
Naquele dia Carlão foi demitido por justa causa. INFARTO FULMINANTE. Recebeu seu FGTS: uma vala, uma cruz e muito cimento.
Amanhã as vigas do setor 34b iriam, em homenagem, fazer 1 minuto de silêncio. Ninguém seria pregado. Marretado. Apertado. Amanhã, a promessa seria apenas um sonho incerto.
Toda manhãzinha ensaiava comer. Contemplava a pouca comida. Pensava. Salivava. E acendia um cigarro para matar a fome.
Saía de casa e ia ao trabalho a pé. Ônibus era coisa dispensável. Ônibus ou cigarro? Ônibus ou fome? Não tinha dúvida. E acendia outro cigarro.
No serviço, Carlão, como era conhecido entre os nordestinos trabalhadores e insuportáveis de tanta alegria, pegava suas ferramentas. Chave inglesa. Marreta. Capacete. E partia para o setor 34b. Acenderia um cigarro, mas se o fizesse não teria o que comer no almoço.
Falemos um pouco do setor 34b. Era um esqueleto ainda. As vigas ouviam as promessas de Carlão – Um dia vocês serão uma grande loja – e ficavam todas felizes ao vê-lo retornar dia após dia com a promessa de que as tornasse algo. Para elas o retorno era uma possível criação.
Carlão trabalhava sozinho no 34b. Isso era um sonho para ele. Vivia ali com as conversas impronunciáveis do metal. Com os delicados xingamentos da madeira quando pregada. E ainda a calma do cimento que secava lentamente.
Então chegou a hora do almoço. Carlão nem se preocupou em descer ao refeitório. Ou mesmo ir ao restaurante frente à construção. - Isso custa! - E ele não custava. Simplesmente almoçou o cigarrinho costumeiro. Tragou uma. Duas vezes bem forte. E sofreu um assalto. Uma tosse assaltou seu ar. Foi ficando tonto. Tossia mais e mais. Não havia como reagir ao assalto. Foi roubado, roubado. O ar. Faltando, faltando...
O fim do almoço tocou. Carlão estava lá parado. O cigarro queimava entre seus dedos. Tocou também, horas mais tarde, o café. Assim como o fim dele. Tocou o fim do dia.Carlão permaneceu imóvel. Parte de uma das fachadas do que seria um grande shopping.
Naquele dia Carlão foi demitido por justa causa. INFARTO FULMINANTE. Recebeu seu FGTS: uma vala, uma cruz e muito cimento.
Amanhã as vigas do setor 34b iriam, em homenagem, fazer 1 minuto de silêncio. Ninguém seria pregado. Marretado. Apertado. Amanhã, a promessa seria apenas um sonho incerto.
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